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Do fim à despedida

Do fim à despedida

O trabalho do necromaquiador começa quando termina a vida alheia

Os cabelos da pessoa à frente de Miguel Carlos Faustino estavam trançados e caídos sobre um ombro, moldando o rosto. O maquiador deu à pele a tonalidade que queria com uma camada de base líquida e blush. Para os lábios, escolheu um batom mais ameno, nude. Nos olhos delineados, acima dos cílios com rímel, uma sombra coloriu as pálpebras, que, a partir dali, ficariam fechadas para sempre.

Faustino é um homem negro de 1,91 metro e fala mansa. Já jogou basquete e trabalhou com fisioterapia, gastronomia e condicionamento físico. Mas só se encontrou profissionalmente depois que fez um curso técnico de necromaquiagem, a preparação de cadáveres para o velório e o sepultamento.

Assim que chega ao local de trabalho, Faustino faz uma oração e, em seguida, pede licença para tocar o corpo. Ele encara seu ofício como uma missão de confortar família e amigos e minimizar a dor de um momento delicado. “Preciso naturalizar e racionalizar a morte, mas sem banalizar.”

Numa noite recente, Faustino conduzia uma aula prática de necromaquiagem num prédio no Centro de São Paulo. Entre os cerca de vinte alunos havia um corretor de imóveis, uma maquiadora gótica e uma motorista de funerária. A cabeleireira Alexandra Silvério estava ali em busca de uma nova profissão. Quando decidiu pagar 790 reais pelo curso de trinta horas, o marido a chamou de louca. A filha adolescente disse que, se a mãe começasse a trabalhar com mortos, nunca mais comeria uma alface manuseada por ela.

Matéria-prima é o que não vai faltar a Alexandra e aos 350 necromaquiadores formados desde o começo do ano pela WT Centro de Estudos, onde Faustino é professor. Em 2011, o IBGE registrou 1,157 milhão de mortes no Brasil.

Em seus trajetos pela cidade, Miguel Faustino carrega livros de necromaquiagem com imagens que chamam a atenção dos passageiros do metrô. Quando veem as fotos, olham logo para a maleta prateada que ele traz a tiracolo. “Um crânio caberia facilmente nela”, observou o professor. Faustino leva ali o arsenal necessário para seu ofício. Alicates, tesouras e pinças de diferentes tamanhos e modelos, além de base líquida, pó facial, batons, sombras e esmaltes. “Tenho que ter opções para todos os tipos e tons de pele.”

Formado ele próprio na escola em que dá aula, Faustino está no ramo há quase três anos. Ele é procurado pela família dos mortos por indicação de funerárias e hospitais. O ofício exige disponibilidade em qualquer dia e horário. Quando não pode atender a um pedido, repassa o trabalho para algum colega.

A preparação rotineira de um cadáver leva em geral de quinze a vinte minutos, mas em alguns casos pode se estender por mais de duas horas. O necromaquiador recebe de 200 a 700 reais pelo serviço. A demanda é bem variável. “Houve semanas em que fiz quatro maquiagens por dia, mas tem também aquelas sem nenhum serviço”, contou.

Nem todos os corpos precisam de maquiagem antes do velório. O processo é mais necessário no caso de mortes não naturais, que podem deixar manchas e escoriações na pele, dando ao cadáver uma aparência de sofrimento. “Isso pode dificultar ainda mais aceitar a perda”, explicou Faustino.

O preparo para o velório não se restringe ao rosto e abrange todas as partes do corpo expostas. O primeiro passo é a limpeza e o tamponamento – o bloqueio dos orifícios com algodão. Em seguida, o cadáver é vestido, e só então maquiado. O preparador contou que já fez cursos específicos para maquiar orientais e árabes e entender as peculiaridades das diversas fisionomias faciais. A crença religiosa do morto ajuda a determinar se o maquiador vai usar batom ou esmaltes, por exemplo. “O objetivo é deixar a pessoa o mais próximo possível do que era em vida. Não podemos fazer nada que possa descaracterizá-la.”

O trabalho é orientado por um parente do morto, geralmente o mais centrado. É ele quem entrega ao necromaquiador a roupa escolhida para o velório e, se preciso, uma foto recente do morto que possa servir de referência. Tem quem peça para acompanhar o trabalho de preparação, mas poucos ficam até o fim. “É difícil aceitar”, disse Faustino. “Ver possíveis suturas, por exemplo, é um sofrimento desnecessário.”

Normalmente o necromaquiador conduz o trabalho sozinho, face a face com o ente querido alheio. Faustino lida bem com a situação, mas a expe-riência pode ser perturbadora. “Numa noite não consegui dormir. Sonhei com um jovem que tinha maquiado durante o dia.” Adepto do espiritismo, o preparador tinha sentido a presença do rapaz. “Acordei, rezei e pedi a Deus que ele tivesse uma passagem de paz.”

Numa cultura em que a morte é assunto tabu, como se a sua simples enunciação já causasse sofrimento, o velório tem a função de dar tempo para a despedida, conforme explicou a psicóloga Maria Júlia Kovács, coordenadora do Laboratório de Estudos sobre a Morte do Instituto de Psicologia da USP. Uma boa imagem do falecido pode ajudar na elaboração do luto. “É uma tentativa de perpetuar a imagem da pessoa em vida, um processo historicamente importante”, disse a pesquisadora.

A aluna Alexandra Silvério comentou que seu maior aprendizado no curso foi ter ainda mais vontade de viver. Num sábado de agosto, ela estava com os colegas na sala de espera de uma funerária. Aguardavam a chegada de um cadáver para um estágio prático. O exercício ajudaria a mostrar quais deles eram de fato talhados para o ofício. “Já vi gente desistir diante do primeiro corpo morto para maquiar”, contou Faustino. Mas a morte, como se sabe, não tem hora, e o óbito aguardado acabou não acontecendo. Os alunos teriam que voltar na semana seguinte.